Vincent Van Gogh imaginou uma Torre nos campos, talvez nos mesmos campos onde os homens tentaram construir a conhecida Torre de Babel nos primórdios da Humanidade. Nesse tempo estavam os homens construindo uma grande Torre na Mesopotâmia, uma Torre que chegasse ao céu, perto dos Deuses, e onde todos pudessem viver, quando um Deus zangado com a ambição dos homens lança a confusão! Desce dos seus aposentos, vê esta enorme obra e, com um sopro, destrói-a!!! Os homens e mulheres que, nessa altura, falavam todos a mesma língua, que viviam em harmonia e que desejavam tanto crescer e ver crescer os seus descendentes ali, na zona do Crescente Fértil, viram-se privados desse sonho, porque esse Deus ao chegar à Torre, ao mesmo tempo que a destrói, confunde a língua dos homens para que estes se deixassem de entender e dispersa a Humanidade pelos cantos da Terra. A Torre de Babel ficou inacabada, e, os homens, confundidos e dispersos. Muitas histórias aconteceram por esses 4 cantos do Mundo até que chegámos há 10 mil anos atrás, época em que se presume ter sido descoberta a agricultura:“(…) uma equipa de cientistas liderada pela Universidade de Mainz descobriu que vários grupos de pessoas praticavam a agricultura no Crescente Fértil e que essas pessoas eram geneticamente muito diferentes umas das outras. Ou seja, os grupos não se misturaram durante milhares de anos (…)”. Ao ler isto pensei: será que os homens e mulheres obrigados a dispersarem-se conseguiram voltar à Mesopotâmia? Ter-se-ão reencontrado para aprenderem em comunhão a Linguagem da Agricultura? Estaria nos seus genes a necessidade de voltar a casa através de uma linguagem que não se perdeu, embora cada um falasse a sua língua? 
Entretanto o tempo continuou a passar, os homens voltaram a dispersar-se…voltou a confusão que teimosamente se mantém presente… e o Futuro? A força da união marcada nos nossos genes voltará a sentir-se como se de uma semente se tratasse? Num voo interminável?

 

a história de uns sabugueiros

Foi no dia 16 de Fevereiro, Terça-feira, que descemos a Serra da Estrela e parámos à beira da estrada, numa vila serrana. Apreciávamos toda aquela água que corria por entre as pedras até às pequenas lagoas, quando um casal se cruzou connosco.
Cumprimentámos-nos, eu perguntei se costumavam caminhar todos os dias por ali, e a senhora, que com os seus 75 anos revelava dificuldades no se caminhar, respondeu que sim, em dias de sol – as dores nas pernas são um peso que grande parte das mulheres carrega nestas idades: o peso dos dias passados à chuva, ao frio e ao calor desde tenra idade, o peso do trabalho, o peso dos quilómetros percorridos a pé, o peso das horas passadas em pé… – hoje têm de ser tratadas com carinho, caminham devagarinho, pensava eu enquanto olhava para ela. Ao seu lado ia o senhor, seu marido, a quem a vida trouxera a doença de Parkinson.
Naquele dia nós, os forasteiros, alterámos a sua rotina matinal. O senhor, muito orgulhoso da sua terra, apontou-nos com o dedo indicador o ponto mais alto da serra, o qual não se avistava dali, e contou-nos: “Subi a serra até à Torre dezenas de vezes! A paisagem é linda”. No cume da Penha do Gato (esse sim, via-se dali), havia-se despenhado um avião em Fevereiro de 1944. O avião vinha de Gibraltar, os seus tripulantes iam passar o Carnaval à sua terra natal, em Inglaterra. Foram todos sepultados no cemitério daquela localidade.
Eu, que procurava um sabugueiro,perguntei ao senhor se havia sabugueiros por ali. Ele respondeu-me com um sorriso, questionando-me: “Se há sabugueiros? Você conhece o sabugueiro?” A sua expressão dizia-me mais, dizia-me que estava surpreendido por lhe termos feito aquela pergunta. Eu respondi que não, não conhecia, mas queria tanto ter um!…
“Ora se há!” – Exclamou!!
E foi a partir daquele momento que sentimos aquela manhã como uma dádiva, sem nunca a termos expressado directamente por palavras.
Surgiram as conversas, estrada acima, estrada abaixo, estrada acima, e estrada abaixo, sempre à procura dos sabugueiros. Havia muitos! Alguns fora do nosso alcance e, outros, em parcelas privadas. O meu amigo que adora ameixas Rainha Cláudia descobriu ali umas mães desses frutos com a ajuda do senhor. Estavam abandonadas. Trouxemos uns jovens ramos, eu, esperançada que algum deles se apaixone pelo nosso abrunheiro.
A certa altura o senhor, cujo olhar vivaço não desistia de procurar o tal arbusto, descobriu um fácil de alcançar, um que a idade ia abandonando com o passar do tempo, pois muitos dos seus braços já tinham secado. Não é que o senhor “ganhou asas”? Desceu a vereda em passo acelerado e eu, assustada, com receio que ele caísse, fui atrás dele pensando que o ia ajudar. Qual quê!! Enquanto ele tratava daquela operação, eu pedia encarecidamente aos meus pés que não escorregassem em toda aquela folhagem que repousava desde o Outono naquele terreno em declive . De repente ouço a sua voz: “Senhora, não se preocupe, vá à frente que eu já tenho aqui um ramo bom”. Eu obedeci-lhe. Lá em cima a sua senhora advertia: “Isso não pega assim, homem! Tem de ser com raiz!” Mesmo assim trouxemos os ramos viçosos, vários, vamos plantá-los num pedaço de terra rica, juntinhos, para que se incentivem uns aos outros a sobreviverem.
Para além de toda a beleza natural com a qual convivemos naquele fim de semana que passou, trouxemos esta connosco, uma beleza que a natureza humana espontaneamente nos ofereceu.
Este casal viveu em Moscavide, “ao meu lado”, pois cresci em Sacavém. O senhor trabalhou na fábrica de munições que se localizava entre estas duas vilas, uma fábrica de onde soavam tiros experimentais todos os cinco dias da semana. Hoje, ele, sempre que pode, passeia com a sua senhora ao longo da estrada de alcatrão ladeada de sabugueiros, ameixoeiras, pinheiros, salgueiros, estes, mais perto da ribeira.
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Toda esta história se passou na vila de Loriga.
Passaram 2 meses e, afinal, todos os ramos que trouxemos da Serra, pegaram por estaca 🙂
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A força no feminino

Em 2014 andei pela cidade de Portalegre e pela Serra de São Mamede à procura de senhoras com 70, 80, 90 anos que gostassem de partilhar comigo as suas histórias de vida. São mulheres ex. operárias de uma fábrica de lanifícios de de uma fábrica de cortiça, ambas encerradas pelo desenvolvimento económico. Também conversei com as tecedeiras já reformadas que teceram as mais lindas tapeçarias do mundo e com as trabalhadoras rurais, que agoram descansam daquele trabalho árduo, mas no qual se sentiram felizes. Já escrevi todas as histórias, são mais de 30! A minha amiga Marta acompanhou-me e fotografou-as. Talvez um dia editemos um livro ilustrado com as hitórias destas valentes mulheres!                                                     http://aldeia-de-gralhas.typepad.fr/mon_weblog/2016/04/hist%C3%B3rias-de-vida-projeto-de-mar%C3%ADlia-ribeiro-e-marta-nunes.html

a Cidade e a Serra são Mulheres

Iniciei uma história que eu gostava que me acompanhasse até ela querer. Não trabalharei à sexta feira durante uns meses e vou dar o tempo desse meu dia, porque há um ano aprendi que o Tempo é o Bem mais precioso que temos para dar. Pretendo partilhar esse meu dia com gente do povo, gente que trabalhou nas industrias importantes desta cidade onde hoje eu vivo e gente que trabalhou nos campos desta serra maravilhosa, a Serra de São Mamede. Vou dedicar-me às mulheres, hoje reformadas e que, com a sua força de trabalho, contribuíram para a vida desta cidade e desta serra. Vou tentar descobrir onde elas estão com a ajuda de alguns amigos e familiares e depois vou convidá-las a contar as suas histórias para mim. Vou ouvi-las atentamente e escrevê-las. Porquê? porque eu gostaria muito de escrever histórias sobre estas mulheres importantes, as mulheres do povo.

Por enquanto fecho-me na biblioteca da cidade e procuro literatura a seu respeito e a respeito da serra, mas leio ao ar livre nos Claustros de um lindo Convento ao qual a biblioteca dá acesso. Enquanto leio, ouço os passarinhos que por ali cirandam, sim porque uma fêmea tinha as suas crias ali pertinho de mim e voava, voava, executando a lide doméstica.

Um mergulho no passado
Um mergulho no passado
o meu local de leitura
o meu local de leitura
A Fábrica da Cortiça e uma história sobre os conflitos sociais no início do Sec. XX
A Fábrica da Cortiça e uma história sobre os conflitos sociais no início do Sec. XX
O passarinho, lá ao fundo sobre a varanda, a minha companhia
O passarinho, lá ao fundo sobre a varanda, a minha companhia

A visita

Era noite e, naquela floresta, estava escuro como breu. Ele olhou para o céu estrelado. A Lua estava a crescer.

A sua lanterna tinha uma luz enfraquecida que teria que ser poupada para durar a noite inteira.

Após alguns lentos e pesados passos ele sentiu que estava perto de um abrigo. Seria uma casa? Entrou e tremulamente ligou a lanterna. Viu uma sala de entrada com um chão de tábuas corridas, uma parede nua e uma porta interior aberta.
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Entrou e através daquela porta chegou à cozinha (todas as divisões se ligavam entre elas através de portas abertas).

A luz amarela das chama daquela lareira acesa centenas de vezes num passado longínquo ficou gravada naquele espaço da memória daquela casa. Não era precisa a luz da lanterna, pois a luz da chama imortalizada por aquela lareira iluminava a visão dele. Ao lado, o azul forte de um armário mostrava o vazio que guardava dentro, um vazio de esperança preparado para receber.
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Outra porta dava acesso a uma sala com uma janela aberta para o exterior. Seus vidros estremecidos pela força dos ventos dos rigorosos invernos tinham cedido ao tempo.
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Noutra sala, a outra janela desistiu e abriu a sua porta à luz
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Foi assim que a alma daquela casa resistiu à morte. Abriu suas portas interiores e exteriores, derrubou suas barreiras e voltou a respirar.

Ele cruzou seus braços na ombreira daquela janela e pensou: “Como é bela a força da fragilidade…” Fechou os olhos e foi esta a imagem que viu no que sentiu:

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O meu conto num caderno

Hoje o meu conto ficou pronto para ser oferecido à biblioteca de Monforte, o sítio onde o li a uma mão cheia de meninos. Neste caderno estão também os desenhos e os poemas que os meninos fizeram sobre a amizade depois de eu ter contado a história. Nunca, mas nunca pensei que este conto fosse tão inspirador para eles. Foi uma experiência única! De tal forma única que não sinto necessidade de a repetir, porque me encheu o coração. Fiz dois exemplares. Um para oferecer à biblioteca, aos meninos que a frequentam e outro para oferecer à minha filha Carolina.
Pronto! Sonho concretizado 🙂

Partilho-o convosco

O Tareco Escritor e o Cinza Cantor

Ontem, sábado

Eram 8:30 horas quando cheguei ao cemitério. Os portões estavam escancarados e, ao fundo, perto do local onde o meu pai está sepultado, ouvi movimento de pessoas e uns sons os quais nunca ali tinha ouvido. Tremi, porque um pensamento assaltou a minha cabeça. Estariam a levantar os ossos do meu pai? Ele morreu há 7 anos. Estará na altura?… hesitei, depois mandei o meu pé direito avançar e continuei os meus passos. Quando cheguei ao local vi um homem dentro da cova rectangular e um outro cá fora. Perguntei se podia passar para visitar o meu pai que estava ao lado. A curiosidade fez-me aproximar da cova, espreitei e vi a parte inferior do caixão coberta de água e o senhor procurando qualquer coisa. Perguntei:
– Onde estão os ossos?
– Estão ao teu lado – respondeu ele.
Eu olhei para dentro do recipiente que estava do meu lado direito e vi uma esfera castanha e umas linhas. Pareceu-me uma pedra e uns ramos, mas era o crânio, ossos das costelas e vertebras, tudo da cor da terra. Perguntei de quem eram e eles responderam:
– São do marido de uma senhora que morreu ontem e vai ser enterrada hoje às 16:00 horas. Os ossos vão ser guardados naquele saquinho de algodão branco e, depois, antes de a senhora ser enterrada, abre-se o caixão e colocam-se os ossos aos pés da esposa.

Achei esta experiência muito bonita, romântica… Foi a primeira vez que vi uma cova aberta para, em vez de entrar, sair o que restava de alguém. Na véspera da ressurreição de Jesus Cristo, assisti ao levantamento dos ossos de um senhor, os quais seriam guardados num saco de pano branco e repousariam aos pés da sua mulher. O reencontro a seus pés…

Despedi-me e quando saí do cemitério, decidi fazer um passeio a pé até ao rio Tejo.

O sino da igreja contava até 9
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Gosto de me sentar aqui
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A estrada terminou aqui. Eram 10:30h
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A minha estreia

Hoje às 10:30 horas contei uma história a um grupo de crianças na biblioteca da vila de Monforte.

O Zé, meu marido desenhou os 3 espaços onde decorre esta história

A rua
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A mansão
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O sótão
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A minha filha Carolina, para quem eu escrevi esta história, fez um slideshow com os desenhos do pai e foi ela quem me acompanhou hoje à biblioteca para ouvir também a sua história por mim contada ao público infantil, pela primeira vez. Os slides passavam à medida que a história mudava de espaço.
O Tareco escritor e o Cinza cantor

A história demora cerca 15 minutos a contar e eu estava com receio que as crianças se aborrecessem. Pensava eu também que iriam poucos e, por isso, só tinha disposto cerca de 6 cadeiras perto de mim.
Qual é o meu espanto quando vejo entrar um grupo de 6, depois mais 3, mais 4, mais 1, mais 5…tivemos que ir alargando o circulo e dispor mais cadeiras à medida que as crianças iam chegando. Eu esqueci-me de as contar, mas penso que seriam cerca de 25. Ouviram-me do princípio ao fim e foram adivinhando o que se passaria a seguir, pois eu ia perguntando. Foi tão bom contar esta história em voz alta! Quando terminei, as crianças agradeceram-me cantando em coro uma canção, uma canção de agradecimento que eu não conhecia! Tive tanta pena de não ficar com este momento registado! tanta pena!

Foi super emocionante sentir que estas crianças entre os 6 e os 12 anos gostaram de ouvir a minha história sobre a Amizade.

No final da história disse-lhes que gostaria de levar uma recordação de cada um deles e pedi-lhes que escrevessem uma história, um poema ou fizessem um desenho sobre a Amizade. Fiquei sem palavras! Mostro-vos dois exemplos:

Descobrimos duas poetisas, a Ana Margarida e a Débora:

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E um menino, o Ricardo, descobriu a “moral da história”:”A Amizade é podermos ser diferentes, pois somos especiais como somos”
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Agora, deixo-vos com a minha história com algumas diferenças relativamente àquela que eu escrevi para a Carolina, pois senti necessidade de a adaptar a este público mais novinho.

O Tareco escritor e o Cinza cantor

Numa noite de temporal, ouviu-se um barulho numa rua de uma cidade chamada “Bem-Me-Quer”. Que barulho seria aquele? De repente, um bichinho que embora não conseguisse abrir os olhos por ser ainda tão pequenino, procurava desesperadamente uma maneira para sair dentro do caixote do lixo. Ali ele não podia continuar, porque quase não conseguia respirar. Pôs as suas pequeninas garras de fora e esgravatou por entre o lixo até se conseguir libertar. Cheirava mal…garrafas, sapatos rotos… ele fazia parte daquele lixo, daquele lixo derrubado pelo vendaval numa noite de temporal.
– Acooorda!!! – disse-lhe o Cinza.
– Oh não, outra vez aquele pesadelo! Nunca mais me livro dele! – exclamou o Tareco
O Cinza era um ratinho que naquela noite procurava comida, quando um caixote do lixo caiu ao seu lado, fazendo um grande estrondo. Assustado, ouviu uma chiadeira terrível saindo da boca do caixote e escondeu-se atrás da roda de um carro. Espreitando, viu o que lhe parecia ser um ratinho todo sujo. Correu até ele e, chegando perto, recuou logo em seguida.
– É um gato!!! O que faço? A minha mãe aconselhou-me a nunca me aproximar dum gato, pois é o nosso maior inimigo.
O gatinho olhou para ele igualmente assustado, pois este era o seu primeiro dia de vida em cima daquele passeio molhado e sujo como ele. O olhar de ambos gritou-lhes a primeira palavra, a palavra cujo significado mais tarde eles haveriam de conhecer. Sabes qual? A palavra “Amizade”.
– Faz hoje 6 anos, Cinza, que nos conhecemos. Começaste a chamar-me de Tareco, por eu nunca estar sossegado e só querer brincar. Salvaste-me naquela noite fria e ensinaste-me a viver na rua para conseguir sobreviver. Vivemos um ano na rua, lembras-te?
– Claclaclaro que me lembro! – respondeu o Cinza, um ratinho que tinha ficado gago por causa de um grande susto que apanhou. Um susto que eu vou agora contar-vos como aconteceu.
Ora bem, passado um ano de os dois se terem conhecido e depois de terem corrido todas as ruas da cidade, encontraram finalmente um abrigo. Uma mansão desabitada, situada numa linda avenida com muitas laranjeiras cobertas de flor. Naquela casa haviam vivido gatos, pois uma das portas traseiras tinha uma pequena entrada em forma de meio círculo para que eles entrassem e saíssem quando lhes apetecesse. Foi por lá que eles entraram. Depois de explorada a nova habitação e chegada a noite, o Cinza esburacou o colchão duma cama e passou a dormir aí. O Tareco escolheu dormir num sofá, mas não tinha poiso certo: ora dormia aqui, ora no tapete de lã estendido aos pés da cama do Cinza.
Um dia, um gatarrão felpudo e despenteado entrou por uma das janelas rés ao chão, cujo vidro estava partido. O Tareco tinha ido à rua procurar alimento e o Cinza tinha ficado a pôr a mesa. Quando ia buscar à cozinha umas latas de sardinha vazias que serviriam de pratos, foi surpreendido pelo bicho. Este lançou-se-lhe num salto e as suas garras, após várias tentativas, prenderam-lhe a cauda. O Cinza, desesperado, derrapava com as suas patinhas no chão da cozinha com toda a força que conseguia. Nisto chega o Tareco que, assim que vê o amigo em apuros, manda ao ar as lulas que tinha fanado no mercado e lança-se ao gatarrão. Enquanto lutavam, o Cinza aproveitou a confusão e libertou a sua cauda. Saltou para cima da mesa, pegou num jarro com água fria e atirou-a para cima do gatarrão. Este, que não gostava nada de água, quando a sentiu, oh patas para que te quero! Pegou nelas e fugiu! A primeira palavra que o Cinza emitiu depois daquela confusão foi “ conconcon”….e nada de concluir a palavra.
– Foge, meu! – disse o Tareco.
– O que se passa contigo? Engoliste a língua?
– Conconcon…seguímos!!! – repetiu o Cinza com relativo sucesso.
– Amigo, ficaste com a língua presa! Temos que ir à noitinha à farmácia procurar um remédio para a tua língua – disse-lhe o Tareco preocupado.
Trouxeram remédio para as aftas, desinfetante para a boca, pasta de dentes e nada, nada resultou. Nada soltou a pequena língua do ratinho Cinza, coitadinho…tinha ficado gago.
A vida continuou com os dias sempre passados da mesma forma. Já estavam aborrecidos por os dias serem sempre iguais. Andavam da cama para o sofá, do sofá para o tapete, do tapete para a cozinha, um passeio até à esquina, o saque duma comidinha, até que resolveram um dia à tarde, a medo, superar este terrível sentimento que os impedia há um tempo de empurrar uma porta, a porta do sótão e bisbilhotar o que ele guardava. Entraram e viram teias, pó adormecido no chão e nuns lençóis que cobriam uma coisa… cobriam o quê? Para satisfazer a sua curiosidade, puxaram com os seus dentes os lençóis e descobriram uma coisa grande com uns dentes pretos e brancos dos quais saia um som assim que o Cinza passava por cima deles. O que seria aquilo?
De um canto surgiu uma voz fininha e doce que disse:
– O que acabaram de descobrir chama-se Piano!
Pata-ante-pata, caminharam até ao canto de onde vinha a voz e apresentou-se-lhes uma aranha com uma dúzia de elegantes pernas.
– Aaaah! És então tu a artista de todos estes bordados espalhados por aqui? – perguntou o Tareco.
– Sim – disse ela timidamente – Há meses que bordo pautas de música na esperança de que alguém as preencha com a letra de uma canção. O som que ouviste, Cinza, foi a voz do Piano.
– Cocococomo te chamas? – perguntou Cinza.
– Carolina – respondeu ela.
Neste dia nasceu mais uma amizade, uma amizade entre um gato, um rato e uma aranha.
No dia seguinte, os dois amigos tomaram o pequeno-almoço rapidamente e subiram as escadas que terminavam na porta para o sótão. Entraram e admiraram as belas teias que ondulavam ao sabor do vento que corria por ali. Limparam o pó ao piano com um lençol e, admirando-o, disseram:
– É bonito!
Chamaram a Carolina e ela respondeu mesmo do cimo das suas cabeças. Estava a bordar outra teia. Os dois, curiosos por saber algo mais sobre o Piano, pediram à Carolina que lhes contasse a sua história. Ela desceu de um fio e poisou no banco que fazia par com o seu amigo Piano. O Tareco e o Cinza sentaram-se no chão para ouvir a história.
Ela começou assim:
– Nesta casa viveu uma família com muitas idades. Eram muitos e faziam desta casa uma casa alegre. As crianças corriam, escorregavam pelo corrimão desde lá de cima, ao fim-de-semana, cheirava a cozinhados assados no forno e a arroz doce e, ao Domingo à tarde, os amigos dos meninos juntavam-se cá e brincavam às escondidas. Infelizmente muitas das minhas amigas aranhas morreram esmagadas pelas empregadas cá da casa e viram destruídas as suas obras d’arte. Eu fugi cá para cima e escondi-me atrás daquela arca. Continuei a bordar as minhas teias, mas escolhi os sítios mais escondidos para que elas não as destruíssem. A filha dos senhores, a Beatriz, tocava músicas muito bonitas todas as noites depois do jantar. Tinha, na altura, 10 anos e os seus 10 dedos dançavam nesta barra preta e branca que vocês aqui veem que se chama teclado. Ela tocava muito bem e eu aprendi a tocar piano por ouvir a menina tantas vezes. Um dia consegui aprender a tocar a minha música preferida. Nos dias de chuva, toco-a sempre para que o meu amigo Piano fique feliz.
Para espanto dos dois amigos, começou a tocá-la com as suas pernas em cima das teclas. Estava dançando!… Quando terminou, fez-se silêncio, um silêncio deslumbrante. Sabem porquê? Porque o Cinza conhecia a letra daquela música. Ouviu-a muitas vezes quando frequentava uma escola de música à procura das migalhas que sobravam do lanche dos meninos músicos e cantores. Nunca chegou a conhecer pessoalmente quem cantava aquela canção, mas, naquele momento, teve vontade de cantá-la e cantou-a!
Magicamente! Vocês que estão a ouvir-me, sabem o que aconteceu magicamente? Magicamente ele soletrou, na perfeição, cada palavra daquela canção. E que voz linda ele tinha!
Quando o Cinza acabou de cantar ficou surpreendido e pensou:
– Quando eu canto não gaguejo! Estou curado!!
O Piano, a Carolina e o Tareco ficaram calados, mas todos ficaram a pensar no mesmo:
O que estaria a passar-se? Teriam a Carolina e o Piano um dom? E o Cinza também?
Todos concluíram que sim. O Cinza chorou e todos choraram, provocando um mar de lágrimas. Eram lágrimas de alegria…e cada uma delas foi caindo numa teia que ligava o pé do banco ao pé do Piano. Adormeceram.
Na manhã seguinte, a luz do sol que entrava pela janela acordou o Tareco. Ao acordar, olhou para a teia coberta de gotas de lágrimas e viu algo surpreendente e mágico. A teia do dia anterior estava diferente, estava enfeitada com umas bolhinhas transparentes que brilhavam com o sol. Mais surpreendido ficou quando viu que formavam uma palavra:
– “Vi-da” – leu ele.
– Vida! Foi o Cinza que me salvou a vida naquele dia em que eu estava misturado com o lixo! – exclamou.
Nisto, ele acordou a Carolina e pediu-lhe que lhe explicasse o que tinha acontecido à menina que tocava o Piano.
– Bem – começou ela – a menina começou a ficar doente. Não tinha força nas pernas, não conseguia manter-se de pé. Levaram-na para um hospital, para outro, para mais outro e a menina estava sempre na mesma. Até que partiram à procura da cura lá muito longe. Gastaram todo o dinheiro que tinham, mas não a conseguiram salvar. Foi uma tristeza quando voltaram. A primeira coisa que fizeram foi trazer o Piano para aqui e taparam-no para não o verem quando precisassem subir ao sótão. Uns meses depois, guardaram tudo e partiram desta casa. Tudo isto foi o Piano que me contou.
O Tareco lembrou-se novamente daquela palavra, “Vida”, lembrou-se também de quantos gatinhos já tinham morrido por não terem alguém que os salvasse e lembrou-se de como os seus pais que, tal como os pais da Beatriz, teriam já sofrido por terem visto os seus filhos partir tão novos. Interrogou-se então de que forma ele poderia ajudar alguém.
A Carolina dava vida ao Piano ao tocá-lo, o Piano dava vida à Carolina ao motivá-la para tecer pautas de música, o Piano e a Carolina deram uma nova vida ao Cinza ao permitir-lhe saber que, cantando, se sentia um rato mais feliz, um rato que não gaguejava. O Cinza devolveu-lhe a vida sendo seu amigo, amigo dum gato. E ele?
Ele descobrira aquela palavra…VIDA!
Numa noite, quando todos dormiam, o Tareco entrou no sótão e aproximou-se das teias. Olhou para elas atentamente e fez-se magia outra vez. Ele descobriu mais uma palavra, mais outra, saltou para outro canto, para o teto e memorizou todas as palavras que conseguiu ler nas teias que enfeitavam as paredes e os móveis. Juntou-as e escreveu um poema sobre a amizade. Com as suas unhas deixou-o gravado no chão de madeira. Escreveu também uma mensagem para os seus amigos, na qual pedia à Carolina que criasse uma música para o seu poema, que a tocasse no Piano e que o Cinza a cantasse. Partiu. Partiu à descoberta da vida, à descoberta de gatinhos que, como ele, estariam destinados a não viver se não aparecesse um amigo.
Ele sentiu-se tão feliz que nunca mais teve pesadelos.

Monforte, 25 de Março de 2013

recordação

Existem pessoas com as quais nos vamos cruzando que, pela sua fisionomia, nos lembram ou o nosso pai ou a nossa mãe. Num destes fins de semana, enquanto bebia uma água, observava um senhor com sessenta e tal anos, magro, curvado – os anos vão puxando-nos para a terra, obrigando-nos a fazer uma curva para que os nossos olhos se conectem bem com ela, talvez – as suas orelhas esticadas para a frente, os seus olhos bem abertos e, sempre que engolia goles de café, os músculos da sua face ganhavam tensão, uma tensão que ajudava o líquido a descer até ao estômago. Olhos verdes, riam-se e diziam-me “Olá”. Eu respondi-lhe – Olá! Andava de um lado para o outro, impulsionado por uma energia interior incontrolável e metia conversa com este e com o outro. Em toda aquela expressividade eu espelhei muitas interrogações, interrogações que se me colocavam sempre que eu o visitava naquele casarão frio, o qual era ligado ao portão por um túnel labiríntico e branco do qual eu nunca quis memorizar onde tinha que virar à direita ou à esquerda. Uma vez no jardim onde lhe fazíamos companhia outros homens, homens que andavam para a frente e para trás, paravam e pediam-me um cigarro ou que eu lhes pagasse um café. Outros olhavam para o infinito com um olhar esquecido, outros com um olhar dormente, outros eu duvidava que olhassem.

O que ainda tenho presente, são os seus últimos olhares, olhares dos seus últimos anos. Olhares de alegria quando me viam, bem como à minha irmã. Olhares meigos diziam que nos amava, sentimento do qual eu duvidei durante alguns…muitos anos…talvez por causa das interrogações, interrogações que solicitavam uma resposta lógica; um acto e respectiva interpretação, sem espaço para qualquer dúvida.

Só esses últimos anos apagaram o “meu ponto, da interrogação”. O ponto tornou-se final e ficou uma bengala, aquela que não deixou cair o que realmente é importante.